Pigmalião e Galatéia?
A idealização do ser amado
02/08/2012 por Luciene Félix
Todos os mitos versam sobre algum drama que vivenciamos. Paul Diel afirma que:
“Os mitos falam do destino humano sob o seu aspecto essencial; destino resultante do funcionamento sadio ou doentio (evolutivo ou não) do psiquismo.”. O que pode haver de salutar ou doentio no anseio pela personificação do ser amado, previamente idealizado?
O poeta romano Ovídio (início da era cristã), na sua obra “Metamorfoses”, relata-nos o mito de Pigmalião, um habilidoso escultor que, chocado com tanta leviandade e abominando o comportamento despudorado das mulheres, decide viver solteiro.
Para se distrair, esculpe então a estátua de uma donzela incomparavelmente bela. Primorosa e requintada em todos os seus detalhes, e uma vez concluída, ele apaixona-se perdidamente pela sua obra, a que passa a chamar de Galatéia.
Iludido com a materialização de tamanha perfeição – “era como se estivesse viva e somente o recato a impedisse de se mover” –, ele enfeita-a, abraça-a, beija-a, e faz-lhe elogios e mima-a com inúmeros presentes tais como jóias, flores e elegantes vestes.
Esperançoso, no festival de Vénus (Afrodite), celebrado em Chipre, Pigmalião implora à deusa por uma bela e virtuosa companheira: “Se vocês nos podem dar tudo, todas as coisas, ó deuses, rezo para que a minha mulher possa ser como a minha menina de marfim.”.
Comovida, mas não encontrando na terra nenhuma mortal que atingisse a perfeição de beleza física de tão amada escultura, a deusa do amor e da beleza, fazendo a chama do altar se erguer três vezes, dá indícios de que atenderá o seu pedido.
Ao regressar à sua casa, Pigmalião deita-se ao lado de Galatéia, a quem chama de adorada esposa e, ao beijá-la, sente-a corar, percebe que “as veias pulsam sob os seus dedos”. Atónito e extremamente agradecido, Pigmalião une-se à sua Galatéia e gera uma bela menina chamada Pafos.
Guiado pelo mito, o dramaturgo irlandês George Bernard Shaw (1856-1950), escreve a peça intitulada “Pigmaleão” (comédia satírica) – que inspirou o musical “My Fair Lady” e os filmes (comédias românticas) do mesmo título, inclusive o de 1964, com a adorável Audrey Hepburn. Nos filmes, firmando, aposta com um amigo, o professor Higgins decide transformar uma humilde florista ambulante numa refinada dama da sociedade.
Atingido o seu intento, apaixona-se pela ‘obra’ que criou, mas tem o seu amor recusado pela moça. Empenhando-se, no entanto, o professor acaba por conquistá-la.
Explorando o mito, nos fins dos anos sessenta, os psicólogos americanos Robert Rosenthal e Lenore Jacobson mostram que acalentar alguma idealização pode se revelar profícuo numa relação. Focando na relação professor/alunos, eles se dedicaram à análise de quanto o optimismo de nutrir boas expectativas se pode revelar benéfico.
Nossa expectativa, a nossa percepção, quer seja de pessoas, quer seja da realidade tem efeito sobre as pessoas que conhecemos, convivemos, sobre a própria realidade e também na maneira como nos relacionamos.
Segundo a teoria que denominaram de “Efeito Pigmalião” (ou efeito Rosenthal), ao confiar previamente no benéfico, esse benéfico presentifica-se. Se partirmos do pressuposto de que alguém ou alguma situação é favorável (bondosa, cortês, virtuosa), consequentemente estaremos contribuindo para que essas características se presentifiquem.
Para o estudioso Douglas McGregor:
“quem tem expectativas ruins sobre os outros, não acredita neles ou não se revê nas suas qualidades, costuma colher o pior dessas pessoas; já quem tem expectativas positivas, tende a obter o melhor de cada uma delas.”.
Se decidirmos antecipadamente que alguém é vulgar, idiota ou inimigo, por exemplo, estaremos ‘dando o tom’ e o que surgir alinhar-se-á mais facilmente a essa expectativa.
No afã da realização de um ideal de parceria, esquadrinhamos na nossa psique as características desejáveis (sobretudo no cônjuge) e, meio que cegos e direitos à individualidade, esquecemo-nos de que as pessoas têm personalidade própria e que é improvável que alguém venha a atender inteiramente aos nossos anseios.
Embora esse anseio de correspondência abarque todos àqueles que nos cercam – em maior ou menor grau, idealizamos os pais, irmãos e até mesmo os amigos –, para projectar os nossos ‘ideais’ no parceiro e nos filhos, que mais nos poderão fazer sentir desapontados. Prevenidos com uma consciência mais realista em relação às fraquezas humanas, enfim, munidos de certa sensatez, amenizaríamos algumas desilusões.
No caso de Pigmalião – talentoso artista –, o seu desejo foi plenamente atendido. Para nós, demais mortais, uma pretensão exagerada pode culminar – em maior ou menor grau – nalguma frustração. Insistir em ‘tirar leite de pedra’, então, pode até terminar em tragédia, como exibem os noticiários.
No mito, graças à crença no poder de uma divindade, Pigmalião teve a bênção de ver materializar-se o ideal de perfeição que ansiava encontrar numa esposa. O professor de “My Fair Lady” pelos seus esforços, pôde – além de fazer emergir na humilde mocinha, a distinta dama que a habitava –, também aflorar nela o amor que sonhava. E o “Efeito Pigmalião” também pode contribuir nesse sentido.
Obviamente, nada garante que as nossas expectativas sejam plenamente realizadas, sobretudo quando elevamos os padrões e almejamos nada menos que a ‘perfeição’. Mas, no caminho que leva à concretização desse ideal, é salutar que, ao invés de pedras nas mãos, tenhamos flores.