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O ENTARDECER

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Em Pleno Esplendor

 

 

Em Pleno Esplendor

 Resultado de imagem para fotos da Cardiga

Naquele paraíso a magia era constante nas quatro estações do ano! No inverno essa magia tinha o acento tónico no medonho. A natureza engrossava a voz e punha o semblante fortemente carregado.

O volume das águas do Tejo aumentava de forma assustadora, em dois ou três dias, por força das primeiras chuvadas, mais persistentes.

A torrente tornava-se forte e impetuosa e a água ganhava uma cor barrenta! Troncos de árvore eram vistos a descer o rio ao ritmo da torrente. Por todo o lado as águas das chuvas descobriam atalhos e mais logo, todas desaguavam no rio, vindas de longe. De tanta água receber o caudal transbordava as margens que ladeavam o leito do rio. Nem os enormes salgueiros e a sua densa ramagem a podiam suster. Era impressionante ver a cavalgada das águas sempre em busca de cada vez mais espaço. A vida animal, sempre desconfiada, apercebia-se da avalanche e refugiava-se como podia, mais longe ou mais alto!

Rapidamente a paisagem verdejante desaparece e fica submersa por um extenso mar que galga muros, estradas, pomares, colinas e toda a planície a perder de vista!

Do alto do castelo a nossa vista só alcançava água. As noites caíam pouco depois das cinco e eram longas, muito longas e medonhas. O silvo do vento forte acompanhado do barulho da intensa chuva a cair, compunham uma sinfonia para a noite toda. A seguir á chuva de dias, numa bela manhã iria aparecer o sol radioso. Mesmo assim as águas do rio continuavam a subir até estacionarem por dois ou três dias. Havia de seguir-se o seu abaixamento, normalmente com muita lentidão, que deixava nas paredes e muros uma linha horizontal castanha que marcava a máxima altura daquela cheia.

 

Atingida a normalidade no rio ficava visível ao longe, uma extensão muito grande toda coberta por uma espessa camada de lama. Esse lamaçal com o tempo irá ficar transformado num infinito conjunto de polígonos originados pela lama que gretava ao secar. Futuras chuvadas acabarão por proceder à lavagem e transporte para o rio de grande parte deste precioso composto. O que fica na terra é um óptimo fertilizante.

 

Com a chegada do sol abre-se um novo ciclo de vida e um aumento do frio. Instintivamente vamos buscar mais uma manta para a cama. De manhã quando se chega à janela para espreitar o dia ficamos deslumbrados. Os telhados do casario à volta estão todos brancos. Ao sair de casa a aragem matinal é fria e deixa o nariz e as orelhas gelados. A vida não pára e toda a gente anda em movimento, até os catraios de sacola às costas lá ia para a escola. Pelos caminhos de terra batida ou simples carreiros, sem pararem e com botas cardadas. Lá iam partindo a água gelada das poças. À noite, dentro de casa, toda a gente se aquecia à lareira. Lenha era aquilo que não faltava.

 

Os trabalhadores, não residentes, deitavam-se nas camas das camaratas para se aquecerem, enquanto deixavam ao lume da cozinha, toda a noite, a roupa molhada pelos dias chuvosos. No dia seguinte era preciso levantar cedo e a roupa para vestir tinha que ser a mesma.

No final do dia, os outros trabalhadores das redondezas lá iam a pé até casa, não sem que a noite lhes caísse no caminho. Aqueles que pernoitavam no dormitório (poucos e de mais longe), também dispunham de uma cozinha geral. Uma mesa comprida e uns bancos corridos e o lume a queimar lenha. era tudo o que tinham.

  

Todos se apressavam a pôr ao lume o seu pote de barro com três pés. Estavam pretos de tanto ir ao fogo. Depois iam vagueando entre o banco e a chaminé, espreitando se os poucos feijões já se podiam comer. De vez em quando tiravam dos alforges pendurados na parede, um estreito tubo de vidro com azeite, e deitavam no pote umas poucas gotas. Mexiam o magro sustento com colheres de pau, após o que provavam. Voltavam a tirar dos alforges uma colher muito gasta e segurando a cabeça com uma mão lá iam comendo com a outra.

Quase não falavam. Quando acabavam seguravam a cabeça com as duas mãos e ficavam imóveis até se irem deitar. Talvez estivessem a pensar na vida e na família que estava longe. Mais tarde lá iam nos seus tamancos feitos de madeira até ao dormitório.

 

Com mais ou menos cheias, eram assim os invernos na Cardiga para os trabalhadores rurais.

 

Com os borbotes pequenos e verdes a rebentarem nos ramos das árvores, percebia-se que estava a chegar a primavera. Na terra o rebentar das ervas e plantas, fazia levantar a camada de lodo que as cheias lá deixavam. Ouvem-se os pardais nos telhados e outros bebem água nas poças mais teimosas. Mais tarde andarão entretidos a fazer o ninho.

As extensas vinhas das terras mais baixas, saem das cheias cobertas de fina camada de lama.

 

As embarcações protegidas durante o inverno nas águas calmas da ribeira, voltam ao seu lugar no porto fluvial. Esta estação do ano é na quinta um crescendo de vida! As canas e os salgueiros empertigam-se e ficam viçosos de verde. Não tarda que os trabalhadores se apurem na poda das árvores e vinhedos. Manadas de bois puxavam os arados na preparação das sementeiras, enquanto atrás as alvéolas de pernas finitas e cauda comprida, depenicavam os vermes trazidos à superfície.      

As trepadeiras que cobriam as extensas paredes do palácio não tardarão a florir. No verão serão o esconderijo e dormitório da passarada.

 

O palácio é considerado património nacional e a sua construção remonta a tempos desconhecidos. O mesmo acontece com o castelo. Lendas antigas relacionam-nos ao Almourol, Templários e Convento de Cristo. Incorporada no palácio existe uma linda capela com ricos vitrais. Entre um dos lados do palácio e o rio ficava um lindo jardim e ao lado deste uma estufa com plantas exóticas.

 

A Páscoa era o ponto alto da primavera. Todas as famílias vestiam a sua roupa melhor e iam à missa, na capela, que se enchia. Os donos conviviam com todos os trabalhadores e participavam com as crianças na festa da procura dos ovos de Páscoa escondidos nos arbustos da horta.

Havia ovos de todas as cores.

Aproveitando o labirinto existente, faziam-se jogos e distribuíam-se prendas pelas crianças presentes.

Nos campos já tudo era verdura e floria. Papoilas e malmequeres brancos e amarelos eram a perder de vista!

As roseiras enroladas às muitas árvores da avenida de entrada, landoeiros, transmitiam-lhe um colorido vistoso e alegre!    

Aos poucos, as águas do rio deixavam de ser barrentas e tornavam-se límpidas. A sua torrente arrastava as ramagens dos salgueiros que assentavam na água. Adeptos da pesca à linha vinham das terras vizinhas. Existiam também os outros quase profissionais, que com os seus barcos pretos em forma de meia-lua percorriam o Tejo estendendo as suas redes.

Outros aprestos como os “covos”, “tarrafas” etc. Ajudavam os pescadores a ganhar a vida. O peixe assim recolhido era vendido nas terras ribeirinhas que não eram abrangidas pela venda de peixe do alto mar.

  

Algum tempo depois outro evento anual fazia acorrer à Cardiga muita gente das redondezas. Falo da 5ª Feira da Ascensão ou “dia da espiga”. Vendedores ambulantes apareciam manhã cedo e montavam as suas bancas. Vendiam refrescos, pevides, tremoços, sanduíches, bolos etc. Outras pessoas vendiam os típicos ramos deste dia, chamados da “espiga”. No rio fragatas enfeitadas passeavam as pessoas a troco de quase nada. Todos entoavam cantigas populares.

 

Tudo isto ao longo dos anos haveria de conquistar o coração das populações das redondezas que, de facto, nutriam grande simpatia e respeito por esta Quinta da Cardina sabiamente gerida durante séculos pelos Cavaleiros do Templo e da Ordem de Cristo.

Socialmente e numa época em que nenhuns direitos havia para aqueles que trabalhavam na vida do campo, tinham eles deixado a semente do respeito pelos outros, que induziria os futuros e mais significativos donos da Quinta, a fornecerem assistência médica, colónia de férias etc., e outros cuidados sociais, até aí inexistentes no Portugal de então.

 

Por esta altura da 5ª. Feira da Ascensão já se podiam comer alguns frutos maduros. As searas tinham a cor amarela da sua perfeita maturação. As hortas tinham de tudo pois a natureza era pródiga, ajudada pela qualidade das terras e pela abundância de água para rega. Ao cair da noite esvoaçavam morcegos por todo o lado e nas noites quentes do fim de Maio as crianças corriam atrás dos pirilampos que em ziguezague se escapavam pelos ares.

O potente sino que se fazia ouvir em toda a quinta, badalava agora mais cedo e mais tarde, era a hora de verão. O sino marcava há anos o inicio e o fim da jornada de trabalho diário e também no rebate a fogos. No pino do sol, no verão, passava a tocar quatro vezes ao dia em consequência do calor e da necessária “sesta”.

 

O andar pachorrento dos carros de bois carregados de cereais indiciava o começo desse verão. Os boieiros, também eles pachorrentos, talvez por contágio, com o aguilhão e a espaços, picavam os animais com algum comprometimento. O trabalho da ceifa era feito por homens afogueados pelo calor intenso.

 

Era este o tempo das violentas trovoadas. Por vezes mais que uma por dia ou em simultâneo provenientes de lados opostos. Os raios iluminavam o céu que antes se tinha tornado escuro. Por antecipação um homem, sempre atento, molhava o chão onde os pára-raios ligavam à terra.

 

Os santos populares eram também motivo para festejar em conjunto com os vizinhos e amigos. Lenha não faltava e alegria também não. As alcachofras estavam mesmo à mão. Com mais ou menos jeito todos saltavam à fogueira.

 

O verão já se fazia sentir e nos dias que se seguiam a fogueira era outra e chamava-se eira. Homens de chapéu preto na cabeça e lenço vermelho no pescoço alimentavam sem cessar aquelas grandes máquinas que separavam as sementes para um lado e a palha para outro. Dava prazer ver os fardos tão bem atados e moldados. Levar os sacos de cereais e os fardos era trabalho novamente destinado aos bois e às enormes mulas. O celeiro e os palheiros irão ficar cheios para mais um ano.

 

Na Cardiga tudo era aproveitado no estrito rigor dos ensinamentos colhidos e melhorados durante várias gerações. O ciclo económico tem regras a cumprir. A abundância de água permitia manter, através da rega, a alimentação de alguns animais, bem viçosa. Nas regateiras corria água muito limpa por todo o lado.

 

Menos que nas redondezas, o calor era imenso. Sufocante!          

 

O verão ia acabando e dando origem ao Outono com a azáfama das vindimas. Novamente os carros passavam pachorrentos transportando uvas brancas e pretas. Eram dias e dias com o mesmo ritual.

Na adega o trabalho era igualmente intenso até á fermentação completa do mosto . Depois eram as provas e envasilhamento do precioso liquido. O vinho da Cardiga era consumido e apreciado por todo o país, sempre rotulado com a Cruz de Cristo.

 

Sem se dar por isso já estávamos no Outono. O sentido decrescente que nos transmite esta estação ,  dá-nos alguma sensação de menos alegria ou mesmo alguma tristeza, são os motivos aparentes, outros poderão existir.

É certo que esta estação tem muito de verão e muito de inverno. De si própria tem o antipático cair da folha, os dias mais pequenos, a chuva, o frio.

A Quinta era invadida por ranchos de homens e mulheres vindas das Beiras para a apanha da azeitona, uma importante tarefa sazonal que punha de novo os carros a transportar toneladas de azeitonas para o lagar. Laborava por vários meses de dia e de noite.    

O azeite produzido era de muito boa qualidade com consumo garantido.

 

Com a chegada da primavera tudo recomeçava...  .

 

Naquele paraíso a magia era constante nas quatro estações do ano! No inverno essa magia tinha o acento tónico no medonho. A natureza engrossava a voz e punha o semblante fortemente carregado.

O volume das águas do Tejo aumentava de forma assustadora, em dois ou três dias, por força das primeiras chuvadas, mais persistentes.

A torrente tornava-se forte e impetuosa e a água ganhava uma cor barrenta! Troncos de árvore eram vistos a descer o rio ao ritmo da torrente. Por todo o lado as águas das chuvas descobriam atalhos e mais logo, todas desaguavam no rio, vindas de longe. De tanta água receber o caudal transbordava as margens que ladeavam o leito do rio. Nem os enormes salgueiros e a sua densa ramagem a podiam suster. Era impressionante ver a cavalgada das águas sempre em busca de cada vez mais espaço. A vida animal, sempre desconfiada, apercebia-se da avalanche e refugiava-se como podia, mais longe ou mais alto!

Rapidamente a paisagem verdejante desaparece e fica submersa por um extenso mar que galga muros, estradas, pomares, colinas e toda a planície a perder de vista!

Do alto do castelo a nossa vista só alcançava água. As noites caíam pouco depois das cinco e eram longas, muito longas e medonhas. O silvo do vento forte acompanhado do barulho da intensa chuva a cair, compunham uma sinfonia para a noite toda. A seguir á chuva de dias, numa bela manhã iria aparecer o sol radioso. Mesmo assim as águas do rio continuavam a subir até estacionarem por dois ou três dias. Havia de seguir-se o seu abaixamento, normalmente com muita lentidão, que deixava nas paredes e muros uma linha horizontal castanha que marcava a máxima altura daquela cheia.

 

Atingida a normalidade no rio ficava visível ao longe, uma extensão muito grande toda coberta por uma espessa camada de lama. Esse lamaçal com o tempo irá ficar transformado num infinito conjunto de polígonos originados pela lama que gretava ao secar. Futuras chuvadas acabarão por proceder à lavagem e transporte para o rio de grande parte deste precioso composto. O que fica na terra é um óptimo fertilizante.

 

Com a chegada do sol abre-se um novo ciclo de vida e um aumento do frio. Instintivamente vamos buscar mais uma manta para a cama. De manhã quando se chega à janela para espreitar o dia ficamos deslumbrados. Os telhados do casario à volta estão todos brancos. Ao sair de casa a aragem matinal é fria e deixa o nariz e as orelhas gelados. A vida não pára e toda a gente anda em movimento, até os catraios de sacola às costas lá ia para a escola. Pelos caminhos de terra batida ou simples carreiros, sem pararem e com botas cardadas. Lá iam partindo a água gelada das poças. À noite, dentro de casa, toda a gente se aquecia à lareira. Lenha era aquilo que não faltava.

 

Os trabalhadores, não residentes, deitavam-se nas camas das camaratas para se aquecerem, enquanto deixavam ao lume da cozinha, toda a noite, a roupa molhada pelos dias chuvosos. No dia seguinte era preciso levantar cedo e a roupa para vestir tinha que ser a mesma.

No final do dia, os outros trabalhadores das redondezas lá iam a pé até casa, não sem que a noite lhes caísse no caminho. Aqueles que pernoitavam no dormitório (poucos e de mais longe), também dispunham de uma cozinha geral. Uma mesa comprida e uns bancos corridos e o lume a queimar lenha. era tudo o que tinham.

  

Todos se apressavam a pôr ao lume o seu pote de barro com três pés. Estavam pretos de tanto ir ao fogo. Depois iam vagueando entre o banco e a chaminé, espreitando se os poucos feijões já se podiam comer. De vez em quando tiravam dos alforges pendurados na parede, um estreito tubo de vidro com azeite, e deitavam no pote umas poucas gotas. Mexiam o magro sustento com colheres de pau, após o que provavam. Voltavam a tirar dos alforges uma colher muito gasta e segurando a cabeça com uma mão lá iam comendo com a outra.

Quase não falavam. Quando acabavam seguravam a cabeça com as duas mãos e ficavam imóveis até se irem deitar. Talvez estivessem a pensar na vida e na família que estava longe. Mais tarde lá iam nos seus tamancos feitos de madeira até ao dormitório.

 

Com mais ou menos cheias, eram assim os invernos na Cardiga para os trabalhadores rurais.

 

Com os borbotes pequenos e verdes a rebentarem nos ramos das árvores, percebia-se que estava a chegar a primavera. Na terra o rebentar das ervas e plantas, fazia levantar a camada de lodo que as cheias lá deixavam. Ouvem-se os pardais nos telhados e outros bebem água nas poças mais teimosas. Mais tarde andarão entretidos a fazer o ninho.

As extensas vinhas das terras mais baixas, saem das cheias cobertas de fina camada de lama.

 

As embarcações protegidas durante o inverno nas águas calmas da ribeira, voltam ao seu lugar no porto fluvial. Esta estação do ano é na quinta um crescendo de vida! As canas e os salgueiros empertigam-se e ficam viçosos de verde. Não tarda que os trabalhadores se apurem na poda das árvores e vinhedos. Manadas de bois puxavam os arados na preparação das sementeiras, enquanto atrás as alvéolas de pernas finitas e cauda comprida, depenicavam os vermes trazidos à superfície.      

As trepadeiras que cobriam as extensas paredes do palácio não tardarão a florir. No verão serão o esconderijo e dormitório da passarada.

 

O palácio é considerado património nacional e a sua construção remonta a tempos desconhecidos. O mesmo acontece com o castelo. Lendas antigas relacionam-nos ao Almourol, Templários e Convento de Cristo. Incorporada no palácio existe uma linda capela com ricos vitrais. Entre um dos lados do palácio e o rio ficava um lindo jardim e ao lado deste uma estufa com plantas exóticas.

 

A Páscoa era o ponto alto da primavera. Todas as famílias vestiam a sua roupa melhor e iam à missa, na capela, que se enchia. Os donos conviviam com todos os trabalhadores e participavam com as crianças na festa da procura dos ovos de Páscoa escondidos nos arbustos da horta.

Havia ovos de todas as cores.

Aproveitando o labirinto existente, faziam-se jogos e distribuíam-se prendas pelas crianças presentes.

Nos campos já tudo era verdura e floria. Papoilas e malmequeres brancos e amarelos eram a perder de vista!

As roseiras enroladas às muitas árvores da avenida de entrada, landoeiros, transmitiam-lhe um colorido vistoso e alegre!    

Aos poucos, as águas do rio deixavam de ser barrentas e tornavam-se límpidas. A sua torrente arrastava as ramagens dos salgueiros que assentavam na água. Adeptos da pesca à linha vinham das terras vizinhas. Existiam também os outros quase profissionais, que com os seus barcos pretos em forma de meia-lua percorriam o Tejo estendendo as suas redes.

Outros aprestos como os “covos”, “tarrafas” etc. Ajudavam os pescadores a ganhar a vida. O peixe assim recolhido era vendido nas terras ribeirinhas que não eram abrangidas pela venda de peixe do alto mar.

  

Algum tempo depois outro evento anual fazia acorrer à Cardiga muita gente das redondezas. Falo da 5ª Feira da Ascensão ou “dia da espiga”. Vendedores ambulantes apareciam manhã cedo e montavam as suas bancas. Vendiam refrescos, pevides, tremoços, sanduíches, bolos etc. Outras pessoas vendiam os típicos ramos deste dia, chamados da “espiga”. No rio fragatas enfeitadas passeavam as pessoas a troco de quase nada. Todos entoavam cantigas populares.

 

Tudo isto ao longo dos anos haveria de conquistar o coração das populações das redondezas que, de facto, nutriam grande simpatia e respeito por esta Quinta da Cardina sabiamente gerida durante séculos pelos Cavaleiros do Templo e da Ordem de Cristo.

Socialmente e numa época em que nenhuns direitos havia para aqueles que trabalhavam na vida do campo, tinham eles deixado a semente do respeito pelos outros, que induziria os futuros e mais significativos donos da Quinta, a fornecerem assistência médica, colónia de férias etc., e outros cuidados sociais, até aí inexistentes no Portugal de então.

 

Por esta altura da 5ª. Feira da Ascensão já se podiam comer alguns frutos maduros. As searas tinham a cor amarela da sua perfeita maturação. As hortas tinham de tudo pois a natureza era pródiga, ajudada pela qualidade das terras e pela abundância de água para rega. Ao cair da noite esvoaçavam morcegos por todo o lado e nas noites quentes do fim de Maio as crianças corriam atrás dos pirilampos que em ziguezague se escapavam pelos ares.

O potente sino que se fazia ouvir em toda a quinta, badalava agora mais cedo e mais tarde, era a hora de verão. O sino marcava há anos o inicio e o fim da jornada de trabalho diário e também no rebate a fogos. No pino do sol, no verão, passava a tocar quatro vezes ao dia em consequência do calor e da necessária “sesta”.

 

O andar pachorrento dos carros de bois carregados de cereais indiciava o começo desse verão. Os boieiros, também eles pachorrentos, talvez por contágio, com o aguilhão e a espaços, picavam os animais com algum comprometimento. O trabalho da ceifa era feito por homens afogueados pelo calor intenso.

 

Era este o tempo das violentas trovoadas. Por vezes mais que uma por dia ou em simultâneo provenientes de lados opostos. Os raios iluminavam o céu que antes se tinha tornado escuro. Por antecipação um homem, sempre atento, molhava o chão onde os pára-raios ligavam à terra.

 

Os santos populares eram também motivo para festejar em conjunto com os vizinhos e amigos. Lenha não faltava e alegria também não. As alcachofras estavam mesmo à mão. Com mais ou menos jeito todos saltavam à fogueira.

 

O verão já se fazia sentir e nos dias que se seguiam a fogueira era outra e chamava-se eira. Homens de chapéu preto na cabeça e lenço vermelho no pescoço alimentavam sem cessar aquelas grandes máquinas que separavam as sementes para um lado e a palha para outro. Dava prazer ver os fardos tão bem atados e moldados. Levar os sacos de cereais e os fardos era trabalho novamente destinado aos bois e às enormes mulas. O celeiro e os palheiros irão ficar cheios para mais um ano.

 

Na Cardiga tudo era aproveitado no estrito rigor dos ensinamentos colhidos e melhorados durante várias gerações. O ciclo económico tem regras a cumprir. A abundância de água permitia manter, através da rega, a alimentação de alguns animais, bem viçosa. Nas regateiras corria água muito limpa por todo o lado.

 

Menos que nas redondezas, o calor era imenso. Sufocante!          

 

O verão ia acabando e dando origem ao Outono com a azáfama das vindimas. Novamente os carros passavam pachorrentos transportando uvas brancas e pretas. Eram dias e dias com o mesmo ritual.

Na adega o trabalho era igualmente intenso até á fermentação completa do mosto . Depois eram as provas e envasilhamento do precioso liquido. O vinho da Cardiga era consumido e apreciado por todo o país, sempre rotulado com a Cruz de Cristo.

 

Sem se dar por isso já estávamos no Outono. O sentido decrescente que nos transmite esta estação ,  dá-nos alguma sensação de menos alegria ou mesmo alguma tristeza, são os motivos aparentes, outros poderão existir.

É certo que esta estação tem muito de verão e muito de inverno. De si própria tem o antipático cair da folha, os dias mais pequenos, a chuva, o frio.

A Quinta era invadida por ranchos de homens e mulheres vindas das Beiras para a apanha da azeitona, uma importante tarefa sazonal que punha de novo os carros a transportar toneladas de azeitonas para o lagar. Laborava por vários meses de dia e de noite.    

O azeite produzido era de muito boa qualidade com consumo garantido.

 

Com a chegada da primavera tudo recomeçava...  .

 

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