Apresentação do Governador Vítor Constâncio do Boletim Económico - Março de 2002, em 30 de Abril de 2002
AJUSTAMENTO ECONÓMICO E CONSOLIDAÇÃO ORÇAMENTAL
A publicação deste Boletim Económico constitui uma oportunidade para realizar uma primeira apreciação do comportamento da economia portuguesa no ano passado usando os dados por enquanto disponíveis. Um primeiro balanço da evolução da economia permite-me identificar três grupos de problemas que defrontamos neste momento:
Uma desaceleração da actividade económica, que partilhamos com o resto da Europa, mas que tem factores internos próprios;
Uma difícil situação orçamental que requer uma redução significativa do défice em pouco tempo;
Um défice estrutural de competitividade a que temos que fazer face com novas soluções que alterem o lado da oferta da economia, de forma a vencer os desafios que nos coloca o alargamento da União Europeia.
Em todo e qualquer país, em todas as sociedades civis, há um fio condutor que assegura o seu progresso e a sua existência. Este fio condutor é composto fisicamente de duas realidades diferentes ; uma de natureza humana e outra de natureza sobrenatural. Esta última representa o seu passado e os milhares de pessoas que o serviram, mas que já morreram. A natureza humana representa aqueles que estão vivos e a representam.
Este fio condutor obedece a regras inscritas, talvez, na natureza. Aquela parte do fio de condição humana pode aguentar esforços de distensão rápida ou mesmo de estagnação ou compressão, mas nunca de rupturas. De qualquer modo, deve estar sempre atenta à componente a que chamei de natureza sobrenatural, muito extensa, que representa aqueles já desaparecidos, ou seja, o passado do país e da sua sociedade civil.
Quem tem a incumbência de tomar decisões se não respeitar esta realidade, ou até rindo dela, pode provocar rupturas de grande dimensão e, muitas vezes, a rutura do tal fio e das realidades e projectos que ele assegurava. Aquilo que foi o esforço de muitos vivos e mortos, acaba por desaparecer pelo efeito da entropia ou seja do lixo avolumado. Isto acontece mesmo que ponham um camião às 10 da manhã a escondê-lo!
De certo modo foi isso que aconteceu em Portugal depois da Revolução dos Cravos. Os capitães tiveram muitos seguidores, embora de natureza mais moderada, mas que cometeram e continuam a cometer erros de estratégia na tomada de decisões. Isto acontece pela total desresponsabilização com que se passa uma esponja aos sistemáticos maus decisores.
Quando por exemplo se aposta numa revolução informática é preciso saber que tipo de licenciados temos produzido e fazer nascer esta realidade em largo tempo e , enquanto isso, manter a coesão das várias gerações nas suas competências e saberes adquiridos.
Num momento em que a nossa adesão à UE levou a drásticas reduções no tecido laboral, por vezes, nos limites da sua quase extinção, casos da agrícultura ou das pescas, teria sido preciso garantir que muita dessa gente atingida, ainda tivesse podido ter sido muito útil ao nosso país. No fundo, poucos países têm tanto mar disponível como nós, e há muitas formas de pescar, e muita riqueza nele por descobrir, para desperdiçar tanto talento e experiência. Na agricultura passa-se o mesmo. Por vezes nem é uma questão de dinheiro, mas sim de respeito pelo Homem. E esta falta de respeito por quem tem valor e se esforçou sem cansaço, desinteressadamente, pelo BEM COMUM, paga-se muito cara em termos de falta mobilização e perda de criatividade.
Na cola da globalização temos pela frente novos sacrifícios dessa natureza. O nosso fio condutor como nação de muitos séculos não pode suportar tanto esforço de tracção. Não podemos esquecer como tantas grandes civilizações desapareceram. Não esquecer “As Mil e Uma Noites” duma Bagdade, centro do mundo, e hoje cenário de um caos arrepiante!
Todos os esforços para encontrar o rumo deste país, continuam a cair em cima de uma geração, como outra não houve até hoje em Portugal. Nascida em clima de Guerras Mundiais e Civis( 1920 a 1945 ), quando para tirar um curso médio só estava ao alcance de poucos endinheirados. Porém, nesses tempos, ficava-se a saber bastante na Instrução Primária !
Era o saber de uma geração que viu morrerem-lhes os pais depois de uma velhice sem reforma e sem segurança social ou quaisquer apoios estatais .
Lares não havia, nem era de supor vir a haver
Morriam de quê ? Ninguém sabia. Morriam.
Depois de uma vida a trabalhar de sol a sol, sem férias, nem conforto !
Eram felizes quando assim era e davam Graças a Deus !
Morriam olhando os filhos com ar de agradecimento pelas migalhas e alguns beijos recebidos deles.
Dos filhos de então que em simultâneo tiveram que dar carinho e apoio a duas gerações enfraquecidas por razões opostas.
Os seus pais e os seus filhos.
Alguns dos filhos já estudavam para aprenderem um oficio. Mas a grande maioria trabalhava desde criança!
Para milhares e milhares de pessoas o emprego não aparecia. Esses legalmente ou a “salto “ debandavam outras terras longínquas umas vezes , para as grandes cidades do país outras, onde não conheciam ninguém.
Muitas vezes para morar em barracas, gelados de frio, como nos “bidon ville”, a fim de mandarem para Portugal as suas remessas em dinheiro. Aos poucos o pecúlio ia crescendo, mas o país que não lhes deu a mão, já não podia passar sem ele para comprar o crude para a nossa nova economia, velha em cada dia.
Mais guerras foram aparecendo na Índia, na Guiné, em Angola e Moçambique, em Timor e mais soldados morreram, muitos. Outros ficaram para sempre inutilizados ou sofredores de pesadelos por matarem ou por medo de serem mortos.
Nas suas aldeias não havia quem tivesse carro. Na vila só duas ou três pessoas !
Milhares morriam prematuramente de tuberculose, também isso pouco importava perante uma esperança de vida tão baixa. Com outras epidemias outros milhares deixavam filhos órfãos, sem sustento nem qualquer apoio.
Enquanto o tempo passava e o século XX dobrava, Portugal apareceu de repente invadido com milhares de coisas que não existiam.
O mundo também.
Algumas até falavam e noutras podíamos ver o mundo inteiro, primeiro a preto e branco e depois a cores.
Eram tantas coisas que nos deixavam de boca aberta.
Esta geração não se assustou e em pouco tempo já as ligávamos e desligávamos e mais uns meses à frente até as sabíamos consertar.
Computadores e tudo. Até programar !
Portugal não ficou envergonhado e até tínhamos dos melhores técnicos, segundo diziam os nossos emigrantes de férias em Portugal!
Quando se quer muito tudo se resolve, mas é preciso que acreditem em nós.
Num momento Portugal também ficou cheio de carros, barcos de recreio etc.
A sua posse tornou-se banal.
Os satélites e as viagens à lua também, não no uso mas nos noticiários !
Certo dia num aeroporto ouvi alguém que chegava dizer à mulher que o esperava : viajei de avião para a madeira em serviço e dormi num bom hotel. Nunca esperei. Sinto-me tratado com respeito.
Nem tudo foram sacrifícios, esta geração já tinha férias, subsídios, assistência médica, descontava para a reforma e começou a ir ao estrangeiro. Diziam que não havia liberdade mas nem tinha tempo para pensar nisso.
A geração de ouro queria era trabalhar e poupar para que nada faltasse aos seus filhos e aos seus pais.
De repente, em Abril/74, começaram-nos a dizer para não trabalharmos tanto e para pedirmos aumento do vencimento. Muitos ingenuamente fizeram-no.
No final dos meses os vencimentos começaram a estar em perigo. Havia boato de que era preciso reduzir custos e despedir ou pré – reformar os mais velhos, aqueles que nunca quiseram fazer greve. Aqueles que só queriam que os deixassem trabalhar.
Aos cinquenta anos o António , e o seu primo da Lisnave, que sabia reparar barcos muito grandes, estavam os dois sentados no jardim. Aos poucos vinham chegando cada vez mais e mais.
Foi a ruptura com uma geração de ouro . Tinha de ser ela a pagar a crise, mesmo sem fazer greves.
Naturalmente sentiu-se mal tratada, desprezada até. Hoje, continua a ser ela a pagar e a ser ignorada!
Nos bancos do jardim, os reformados e pré-reformados, ouviam coisas como esta: “pelo meu filho soube que na escola dele nenhum miúdo sabia o que era uma lima ou uma grosa. Ninguém sabia a tabuada ou fazer contas. Só sabiam que o Porto era lá do norte, por causa do jogo do futebol. Tudo isto deve ser da minha cabeça pois, vi num jornal do clube do bairro, que agora estudam muito mais crianças mas, uma olhou para o jornal que eu lia, e não conseguia ler direito”. Era uma das que aumentavam as estatísticas da escolaridade! Depois, o mercado de trabalho não lhes dá emprego porque os mesmos que defendem a escola pública também deram cabo da pouca economia que havia e não puderam nem souberam erguer outra que empregasse tanto licenciado!
Noutro banco do jardim podia-se ainda ouvir : “fui visitar os meus antigos colegas de trabalho para lhes contar as coisas estranhas que tenho sabido. Mais valia não ter lá ido, estava um licenciado no meu lugar a fazer contas de somar contando pelos dedos. Ainda me ofereci para o ajudar, mas ele olhou-me com má cara”.
Enterraram a geração de ouro nos bancos do jardim prematuramente, e continuam a tirar-lhe dinheiro e regalias que com tanto sacrifício tinham conseguido! Também deram cabo da “segurança social”. Tudo está em perigo!
Se calhar tais trabalhadores estavam a mais e deveriam ter morrido mais cedo, como os nossos pais, aos cinquenta anos. Era melhor para todos . Esticaram tanto que partiram o fio condutor !
Agora não encontram remédio para o défice das finanças públicas!
Vão ver que ainda vêm ter connosco para pagarmos a crise ! Certo e sabido, hoje, já nos estão a tirar tudo aquilo que alcançámos com sangue suor e lágrimas!